Opinião
Do ‘socorro, Forças Armadas’ ao ‘América, salve o Brasil’

Por Wilson Gomes*
Entre os muitos modos pelos quais o autoritarismo se manifesta, há um que permanece insuficientemente nomeado e que tem reaparecido de forma insistente na política brasileira contemporânea.
É importante notar que ele não se reduz à submissão a líderes fortes nem à agressividade contra inimigos, categorias conhecidas na pesquisa sobre autoritarismo político e já descritas por Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford em The Authoritarian Personality (1950). Tampouco se limita ao padrão que Bob Altemeyer demonstrou em suas pesquisas sobre o Right-Wing Authoritarianism (1981), nas quais mostrou que indivíduos autoritários não apenas obedecem, mas também desejam líderes fortes, especialmente em contextos de ameaça.
Nem mesmo coincide inteiramente com o que Karen Stenner chamou The Authoritarian Dynamic (2005), ou seja, a intolerância à diversidade que se ativa em momentos de instabilidade social e leva grupos a preferirem soluções uniformizadoras.
O fenômeno a que me refiro é algo mais radical e menos frequente: trata-se do apelo à autoridade absoluta, isto é, a disposição psíquica e social de recorrer a uma instância suprema, onipotente e despótica, que se coloca acima da política, da lei e do Estado, para impor pela força uma ordem considerada justa e necessária. Ou, dito de outro modo, para restaurar a ordem diante do caos, restabelecer a justiça diante da injustiça percebida, produzir segurança diante da crise.
Essa disposição ficou evidente em vários momentos recentes da vida política brasileira. Em 2013 e 2014, nas jornadas de protesto que começaram em junho, uma cena chamava atenção. No meio de cartazes contra partidos, contra os políticos “que estão aí” e contra a corrupção, apareciam também faixas com os dizeres “socorro, Forças Armadas” ou “intervenção militar já!”. Nos ambientes digitais, milhares postavam nos perfis de generais ativos em redes como Twitter ou Facebook, implorando para que os militares fizessem alguma coisa para “consertar o Brasil”.
Essas mensagens não clamavam por políticas e políticos concretos, não eram dirigidas a lideranças emergentes daquele momento. Elas invocavam um poder tutelar supremo, identificado com os quartéis, que pudesse intervir por cima de tudo e de todos, suspendendo as regras do jogo democrático para “colocar ordem na casa”.
Hoje sabemos, com mais clareza, que não havia ali nenhum patriotismo sincero em jogo.
Havia, sim, a convicção de que apenas os militares estavam acima da lei, do Estado e da própria política, e de que caberia a eles corrigir pela força os rumos da nação.
Esse traço se repetiu no final de 2022 e início de 2023, quando militantes da extrema-direita, derrotados nas urnas, acamparam diante de quartéis do Exército e de polícias militares em diversas capitais.
Eles não pediam contagem pública dos votos, não reivindicavam revisão judicial, não pressionavam o Congresso: pediam uma intervenção direta das Forças Armadas, desconsiderando a Constituição, o Estado de Direito e a soberania do voto.
Os acampamentos eram menos um gesto nacionalista, apesar das bandeiras e camisas da seleção, e mais uma confissão de fé em uma instância tutelar suprema. O que estava em jogo era a mesma disposição que aparecera em 2013–2014: a confiança de que apenas um poder militar onipotente, situado acima de todas as regras, teria legitimidade para salvar o país de sua própria política.
Essa devoção explica por que Jair Bolsonaro, militar fracassado e político irrelevante por décadas, pôde ascender à condição de líder. Ele não se tornou chefe simplesmente por carisma pessoal, organização política ou talento estratégico.
Tornou-se líder porque encarnava a mesma agenda de seus seguidores: a crença de que os militares estão acima da lei, do Estado e da política, e de que somente eles possuem a autoridade legítima para “salvar a nação”. Sua biografia militar, mesmo sem brilho, e seu discurso sistematicamente centrado no prestígio das Forças Armadas o credenciaram como porta-voz perfeito dessa convicção.
Bolsonaro foi o líder que nunca precisou ser, porque sua liderança se confundia com a agenda militarista que partilhava com seus apoiadores.
Quando esse Deus Optimus Maximus militar se revelou frágil, quando generais passaram a responder a processos, quando líderes do movimento foram condenados pelo Supremo Tribunal Federal e o próprio Bolsonaro se viu prestes a ser enquadrado pela Justiça, o apelo não desapareceu. Apenas se deslocou.
No 7 de setembro de 2025, as manifestações que celebravam a data magna da pátria foram marcadas não pelas tradicionais bandeiras brasileiras e camisetas canarinhos, mas principalmente por enormes bandeiras norte-americanas.
Nas ruas, esse deslocamento simbólico ficou cristalino em um detalhe que, longe de ser trivial, tem enorme força política. Os bonés vermelhos do Make America Great Again, exibidos com orgulho por militantes e até pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, candidato mais visível à sucessão de Bolsonaro, são talvez o emblema mais explícito dessa lógica.
Colocar sobre a cabeça o slogan do nacionalismo estrangeiro mais etnocêntrico não é um gesto de patriotismo; é a confissão pública de que a esperança não repousa mais na própria comunidade política, mas na tutela de uma potência externa investida de autoridade suprema.
Esse gesto antipatriótico não é um desvio, mas a realização consequente do apelo à autoridade absoluta: quando o Deus Optimus Maximus nacional se revela frágil, substitui-se a devoção por um novo santo, agora estrangeiro, elevado à condição de Júpiter que pode tudo. Tarcísio aceita tudo, até que o Brasil se torne o 51º estado americano, desde que a “injustiça contra Bolsonaro” seja reparada.
Continuam patriotas, mesmo que de outra pátria. Os apelos já não eram dirigidos aos quartéis, mas a Donald Trump, o “presidente reinante” dos Estados Unidos, elevado à condição de novo Júpiter, comandante-em-chefe do maior poderio militar do planeta, investido da função de tutelar o Brasil e salvar Bolsonaro e seus generais de estimação de uma condenação dada como certa.
Para muitos militantes da extrema-direita, já não era esta a pátria a referência, mas um poder externo, estrangeiro, considerado onipotente, ao qual dirigiam suas súplicas.
Quando a figura anterior do Deus Optimus Maximus se mostra frágil, quando a promessa de tutela militar interna vacila, o apelo se transfere sem dificuldade para outra instância considerada onipotente, agora externa.
O patriotismo é circunstancial, um ornamento retórico, um recurso de conveniência. O que permanece é a disposição autoritária de sempre invocar um poder absoluto, capaz de se impor pela força.
Em The Authoritarian Personality, Adorno e colegas registraram esse traço em estado embrionário. Entrevistados de alta pontuação declaravam: “Às vezes penso que só Deus pode pôr fim a essa bagunça, mas, se não for Ele, talvez o Exército consiga” (p. 763).
Outros diziam: “O que este país precisa é de um homem forte que ponha fim a toda essa bobagem. As pessoas deveriam aprender a obedecer, e as coisas seriam melhores” (p. 684).
E os autores resumiam: “O desejo por uma autoridade forte que possa aliviar o indivíduo do fardo da responsabilidade reaparece constantemente. Ele é frequentemente projetado em um líder imaginado como um pai que protege contra um mundo perigoso e caótico” (p. 784).
Esses depoimentos poderiam ter sido lidos em cartazes de 2013 ou em grupos bolsonaristas de 2023. O desejo não era apenas de obedecer a líderes, mas de invocar uma instância suprema que suspendesse a política e restaurasse a ordem e a justiça.
Bob Altemeyer, décadas depois, mostrou com clareza que pessoas de alto escore em RWA desejam líderes autoritários, sobretudo em tempos de ameaça.
Em seus experimentos, quando confrontados com cenários de crise, esses indivíduos apoiavam conceder poderes extraordinários a líderes fortes, mesmo ao custo da democracia. Há, portanto, evidente continuidade entre os achados de Altemeyer e o comportamento da extrema-direita brasileira: a disposição de sacrificar a democracia em nome de soluções autoritárias.
Mas há também diferença: o que se pede no Brasil não é apenas um líder mais forte, mas uma instância transcendente, externa, investida de poder ilimitado. É a transferência da devoção de Bolsonaro para Trump, do Exército brasileiro ao poder militar e econômico dos Estados Unidos.
Não se trata apenas do culto a um líder carismático, mas da súplica a um poder absoluto.
Karen Stenner, por sua vez, descreveu a intolerância à diversidade e à desordem como a essência da dinâmica autoritária.
Essa intolerância, quando ativada, leva à demanda por unidade e autoridade. A lógica que vemos no Brasil se encaixa nesse padrão: diante de derrotas eleitorais e processos judiciais, grupos autoritários preferem suspender a democracia em nome da unidade imposta por uma instância tutelar.
Mas, novamente, há um passo além: não se trata apenas de preferir líderes fortes, mas de invocar uma entidade onipotente que venha “de fora” para resolver tudo.
É por isso que proponho considerar o apelo à autoridade absoluta como uma categoria específica.
Ele pode ser definido assim: é a disposição autoritária que, diante de ameaça, caos ou desordem percebidos, não se satisfaz com líderes fortes ou instituições vigentes, mas clama por uma instância suprema, onipotente e despótica — Deus, Forças Armadas, potência estrangeira — para intervir, suspender a normalidade democrática e restaurar a ordem, a segurança e a justiça.
Trata-se de um traço distinto da submissão autoritária (a tendência a obedecer e se submeter a líderes percebidos como legítimos), da agressividade autoritária (a hostilidade dirigida contra grupos e indivíduos considerados desviantes ou ameaçadores) e do convencionalismo (a adesão rígida às normas sociais tradicionais e ao modo de vida dominante).
Não se trata da tendência a se submeter a um líder autoritário ou de exercer punições autoritárias aos que se desviam da norma, mas do desejo de que alguma potência apareça para restaurar, à força e sem limites, a ordem, a justiça e a segurança pela qual anseiam.
As implicações para a democracia são severas: o apelo à autoridade absoluta significa renúncia total à política democrática.
Não há reivindicação de direitos, não há disputa eleitoral, não há negociação institucional: há a súplica por uma intervenção tutelar, suprema, que anule todo o resto.
É isso que explica por que, diante da derrota em 2022, tantos militantes preferiram se instalar diante de quartéis a organizar oposição no Congresso. É isso que explica por que, em 2025, a devoção nacional evaporou tão rapidamente, transferindo-se sem pudor para um presidente estrangeiro.
A história recente mostra a persistência desse traço.
Em 2013 e 2014, pedia-se “socorro, militares”. Em 2022 e 2023, derrotados acamparam diante de quartéis, suplicando por intervenção. Em 2025, as bandeiras americanas nos atos de 7 de setembro revelaram que a devoção se transferiu a outro santo, elevado a novo Deus Optimus Maximus, novo Júpiter tutelar.
O que une todos esses momentos não é patriotismo, mas a disposição autoritária de invocar um poder absoluto, supremo, capaz de salvar o grupo, proteger o líder e anular o inimigo.
Reconhecer essa disposição é fundamental para compreender não apenas a extrema-direita brasileira, mas também os riscos atuais para a democracia: a ameaça não vem apenas de líderes autoritários concretos, mas de uma psicologia política que sempre buscará, diante do caos, um poder onipotente para tutelar a sociedade.
*Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor titular da Universidade Federal da Bahia e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada". - Via Canal Meio
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