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Cascavel,10/10/2024

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Opinião

Nossa Senhora de Copacabana


Nossa Senhora de Copacabana

Por Guilherme Werneck


Neste sábado (4/5) Madonna sobe ao palco erguido nas areias de Copacabana, no Rio de Janeiro, para o encerramento da Celebration Tour. Esta é a única parada da turnê que comemora os 40 anos de carreira da rainha do pop na América do Sul. Mais do que o show em si e a excepcionalidade de ser um espetáculo gratuito — o que está fazendo com que um bando de forasteiros, eu incluído, invadam a orla carioca seduzidos pela promessa de que a praia vá virar uma gigantesca pista de dança para 1,5 milhão de pessoas —, o público vai ver se encontra ali a resposta para uma pergunta. Como uma estrela do pop, gênero efêmero por natureza, consegue galvanizar a atenção de tanta gente, de gerações tão diferentes, depois de quatro décadas de superexposição?

Acompanho a carreira de Madonna desde os anos 1980, e a resposta a essa pergunta vem um pouco sem esforço. Ela sempre soube dialogar com seu tempo. Mais: embora tivesse afinidades estéticas com segmentos sociais marginalizados e com uma música de nicho, como a cultura gay e o som dos clubes nova-iorquinos do fim dos anos 1970 e começo dos anos 1980, sua mira sempre foi a cultura de massas. De certa maneira, Madonna entende muito rápido que é uma artista com potencial para se tornar um ícone. Por outro lado, sabe também que precisa ser um produto. E uma coisa não diminui a outra. Na verdade, essa renovação incessante da projeção de desejo é um trabalho incansável, com pitadas de Sísifo, e parece acontecer de um jeito muito natural ao longo de sua carreira.

Para entender as dimensões desse desejo, volto a 1984, para encontrar o meu eu de 12 anos, começando a me interessar por música. Um garoto de classe média de São Paulo, que, como todo moleque da época, vivia com acessos bastante limitados para entender o mundo pop: um três em um com poucos discos (clique aqui se você tem menos de 30 anos e nunca viu um três em um), mas com o rádio bastante usado, sete canais de TV aberta para assistir, um videocassete, coisa meio rara ainda, um punhado de revistas e o jornal do dia.

Já tinha ouvido Holiday e Everybody, os singles do primeiro disco, que rolavam na FM e nos bailinhos, mas sou arrebatado mesmo pelo álbum Like a Virgin (Spotify). E não apenas pela música. O pacote incluída uma boa dose de informação visual. A questão da moda era super importante, e dois veículos foram fundamentais para projetar essa imagem fashionista. Primeiro, os videoclipes – em 1984 começava o Clip Clip na TV Globo. Depois, a atuação no cinema, que se inicia com Procura-se Susan Desesperadamente, de Susan Seidelman, em que Madonna basicamente interpreta a si mesma, uma jovem liberada e moderna, que desperta o interesse e uma leve inveja da dona de casa Rosana Arquette, filme que vi inúmeras vezes na Sessão da Tarde.

Like a Virgin, a música, foi seu primeiro número um na parada da Billboard. O álbum, que também chegou ao topo das paradas, trazia sucesso atrás de sucesso: Material Girl, Into the Groove e Crazy for You, todos com clipes mega bem produzidos e já abrindo diálogo com os filmes. O clipe de Into the Groove, por exemplo, é quase um trailer hedonista de Procura-se Susan Desesperadamente.

Fazer música pop é muito complexo. Existia uma cultura de muito cultivada pela crítica da época de torcer o nariz para tudo que feito para vender, coisa que ainda vemos com uma certa frequência hoje. Ao mesmo tempo, a canção pop tem um poder de atração inegável. Quando olhamos para essa primeira fase, o que Madonna estava fazendo na realidade era pegar um som que já existia nos clubes de Nova York e amplificar seu alcance, dando a ele novo contexto. Saem de cena as noites de uma Nova York tensa, como nos filmes de Martin Scorsese, e entra uma rebeldia jovem, superproduzida, com uma sensualidade atraente para quem era hétero.

Se Madonna era frequentadora do Studio 54 e bebia diretamente em Larry Levan e nas noites do Paradise Garage, o mais icônico club de Nova York para a cultura da dance music e do underground gay, na sua tradução para o mundo das massas só quem entendia de onde aquilo vinha conseguia ver o quadro completo. Quem não entendia direito, como o meu eu adolescente, podia curtir o som e as fotos dela nua nos anos 1970, publicadas pela revista Playboy nos Estados Unidos, e republicadas na edição nacional. Convenhamos que é um apelo bem diferente da cena dos clubs, principalmente nos anos pré-Aids.

Uma coisa que tem de ser dita é que a cena de clubs que Madonna costumava frequentar e onde se apresentava no começo de carreira era bastante eclética, e ela se vale desse ecletismo. Tovaca em lugares clássicos de dance music como o Danceteria, e também fazia shows em casas como o Mudd Club, frequentado pela turma das artes visuais; o CBGBs, berço do punk rock e da new wave; e o Roxy, com sua pegada multicultural que atraía os novos nomes do hip hop. Pode-se dizer que o som dançante de Larry Levan com sua disco moderna é a planta baixa do som da cantora nos anos 1980, mas que todas essas influências, da new wave ao hip hop, também colaboram para o caldeirão sonoro dos primeiros discos.

Trocando de pele

A partir da Marilyn Monroe meio punk, meio glamurosa que estampa a capa de Like a Virgin, ela começa a trocar de peles, visuais e até de personalidade. Claro que isso acontece depois de ela explodir como fenômeno pop e já não circular mais da mesma forma. Ela já não é mais um produto de Nova York, o mundo toda passa a ser sua casa. Da ingênua Material Girl ela vai pra mulher provocante e empoderada de Vogue e Erotica, na virada dos 80 para os 90, chegando à mulher espiritualizada dos últimos discos. Um paralelo interessante, para além da música, é ver como isso se reflete em dois campos: no do cinema e no da moda.

Olhando para o cinema, ela deixa para trás comédias  jovens como Quem É Essa Garota, de James Foley, para encarar mulheres mais fatais como a Breathless Malone de Dick Tracy, dirigido por Warren Beatty, e a Rebecca Carlson de Corpo em Evidência, de Uli Edel.

No campo da moda, não só evoca o voguing e a cultura drag queen como uma dose de fetichismo. Nessa época, ela está muito próxima do estilista Jean-Paul Gaultier, que desenhou o inesquecível corset da turnê Blond Ambition, com um pé na arte e outro na sensualidade. Outra colaboração próxima desse período é com três grandes fotógrafos. Mario Testino começa a fotografá-la para revistas de moda e faz capas com ela durante décadas. Com Steven Maisel ela faz o livro Sex. Mas talvez quem mais influencie seu visual seja Herb Ritts, autor também de uma série de clipes como True Blue e Like a Prayer.  Ao longo de toda a sua carreira a moda é sempre definidora.

Quando chega ao mega estrelato, a relação passa a ser de mão dupla. Por um lado, ela dita a moda, por outro, ao fazer campanhas publicitárias e vestir frequentemente Givenchy, Dolce & Gabbana e Stella McCartney, também é inspirada por esses criadores.

Fim de uma era

A década de 1990 também vê Madonna se afastando um pouco dos holofotes para cuidar de sua filha recém-nascida. Quando ela volta a gravar, com Ray of Light, a temática muda. As bases eletrônicas estão cada vez melhores, mas agora as letras trocam o sexo pela espiritualidade. Ela segue, pelo menos do ponto de vista sonoro, por caminhos semelhantes até American Life, um de seus discos mais mal recebidos pela crítica, justamente por conta de um excesso de correção política. Pode-se dizer que foi um ponto da carreira em que ela se mostra mais afinada com seus propósitos do que com seu público. Mas não podemos esquecer que esta é uma das fases mais turbulentas da indústria da música.

O disco é de 2003. Três anos antes, o Napster havia mudado radicalmente a maneira como a gente se relaciona com música, deixando de comprar discos para piratear os sons favoritos. É o momento em que vira uma chave cultural importante. Saímos da cultura da recessão, onde poucos produtos são oferecidos ao longo do ano, e todos eles com preço alto, para uma cultura da abundância. Com a produção musical mais barata e a troca de arquivos livre, há toda uma mudança em curso que artistas mais estabelecidos têm dificuldade de manejar, acostumados aos caprichos das grandes gravadoras com seus adiantamentos milionários, presentes nababescos e todos os mecanismos de jabá para impulsionar sua produção.

É justo dizer que Madonna se perde um pouco nessa fase, mas rapidamente volta poderosa, com Confessions on a Dance Floor, em que, de certo modo, volta à sua essência de pista, mas ainda muito presa aos padrões da indústria. O que faz a próxima virada na carreira da cantora é o que também fez nossas vidas virarem numa velocidade estonteante: a chegada das redes sociais e do YouTube. Para quem havia surfado a onda dos videoclipes como ninguém e sempre manteve uma relação simbiótica com a moda, as mídias sociais e sua evolução para a cultura da imagem caem como uma luva.

Talvez seja exatamente esse aspecto de a figura pública se tornar mais relevante do que a produção estritamente musical que tenha feito com que seus lançamentos seguintes, como Hard Candy, MDNA e Rebel Heart , continuassem chegando ao número um das paradas, a despeito de críticas bem irregulares. A falta de inspiração com uma produção mais padrão pra época em Hard Candy, a falta de profundidade de MDNA, ou o uso pouco criativo do EDM, a forma mais pop de eletrônica, em Rebel Heart.

Que mané novo?

A realidade é que os novos lançamentos pouco importam. Quando ela lança MDNA, em 2012, o mundo já está todo migrando para uma nova forma de ouvir música: o streaming. E aí já não é mais o lançamento que conta, e sim o conjunto da obra. Nesse ponto, Madonna tem um catálogo imbatível.

O streaming foi a saída da indústria da música para combater a pirataria. De um jeito inteligente, dá comodidade e facilidade em vez de repressão. Mas, claro, para manter o bônus dos executivos jurássicos da velha indústria, um braço Torquemada contra a pirataria nunca deixou de existir. A realidade é que o streaming é muito bom para o usuário mas não enche barriga da maioria dos artistas. As carreiras acabam todas voltadas para o ao vivo. E se tem uma coisa que Madonna sabe fazer bem é show. Vi só uma vez ao vivo de fato, no show do Morumbi em 1993. Mas já vi vários trechos de outros no YouTube. Ela é mestra, com uma presença de palco inigualável, coreografias originais, projeções... Um show de Madonna é sempre algo grandioso.

Até porque, de novo, não é sobre música, é sobre uma vida incrível no topo da indústria do entretenimento e suas muitas facetas. Da produção com muitos momentos de arrojo estético, à atuação fora do palco abraçando causas que vão da óbvia militância LGBTQIA+ à da adoção, às relações umbilicais com o universo da moda, e à disposição para estar em constante mutação, que ela aprendeu com David Bowie e ensinou para as gerações seguintes de artistas pop como Lady Gaga, Britney Spears, Rihanna, Beyoncé, e Miley Cyrus, só para falar de algumas.

Dos shows grandiosos, esse de Copacabana tem tudo pra ser histórico. Primeiro porque é realmente uma celebração de toda uma vida, com sucessos de todas as épocas, inclusive com uma e outra música mais global do último disco, Madame X. Tomando pelos outros shows, vai ser um hit atrás do outro, e, no Rio, ainda há a promessa de ser um show mais longo, com músicas que não foram mostradas em outros países. Tudo envolto em mistérios e boatos. Que brasileiros vão tocar com ela? Vai ter bateria de jovens com arranjo do Pretinho da Serrinha? Vamos ver lado a lado Anitta e Madonna e com que roupa? Vai ter dueto com a Pabllo Vittar? Nada é certo. Para entrar nesse jogo de adivinhação, fiz no Spotify uma playlist do que acho que pode rolar no palco, pensando nos shows anteriores. Mas é mero chute. A real eu vou saber o que ela vai tocar com vocês mais tarde. A gente se encontra na pista.




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